Muito além de um cartão postal

É comum ouvir as pessoas que trabalham e frequentam o Ver-o-Peso chamando-o de “principal cartão postal” de Belém. No entanto, o apelo estrito ao potencial turístico do espaço limita consideravelmente a compreensão da sua importância histórica, sociocultural e econômica no contexto da cidade.

Seu público, portanto, está bem longe de ser prioritariamente o de turistas, na medida em que por ali circulam trabalhadores e produtos provenientes de diferentes partes da cidade, como a Central de Abastecimento – Ceasa, das muitas ilhas, furos e municípios do entorno do capital, assim como de pontos mais distantes, como o arquipélago do Marajó e o Baixo Tocantins, entre outras regiões do estado.

O mercado responde pelo abastecimento direto de casas, restaurantes, lojas, supermercados da capital e, de forma indireta, serve como ponto de uma rede mais extensa de mercados e feiras da cidade e dos municípios vizinhos. Por ali também circulam todos os dias, por meio de dezenas de linhas de ônibus, milhares de habitantes de toda a região metropolitana de Belém.

Um conjunto de estudos antropológicos já foram realizados no espaço. A professora Wilma Marques Leitão, da Universidade Federal do Pará, que coordenou alguns deles, relembra, a partir do capítulo de um livro publicado em 2010, dos significados sociais, culturais e de prestação de serviços mobilizados por um mercado com o porte Ver-o-Peso, onde os horários de funcionamento também influenciam o movimento comercial das imediações.

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Fonte: Ver-O-Site/Centro de Memória da Amazônia e Iphan-PA

Para se ter uma ideia da quantidade de atividades ali realizadas, um Inventário de Referências Culturais realizado pelo Iphan entre 2008 e 2010 identificou na área mais de 40 ofícios relacionados às atividades do mercado.

Ofício de erveira e erveiro; Ofício de mateiro; Ofício de regateiro; Ofício de barraqueiro de festa de santo; Ofício de funileiro; Ofício de reparador de eletrodomésticos; Ofício de amolador de faca; Ofício de peixeiro; Ofício de balanceiro; Ofício de carregador; Ofício de vendedor de miudezas; Ofício de vendedor de frutas; Ofício de vendedor de polpa de frutas; Ofício de vendedor de produtos importados; Ofício de vendedor de mariscos; Ofício de vendedor de animais vivos; Ofício de vendedor de peixe salgado; Ofício de vendedor de muda de plantas; Ofício de vendedor de camarão salgado; Ofício de vendedor de farinha; Ofício de vendedor de roupas; Ofício de vendedor de ferragens; Ofício de vendedor de redes; Ofício de vendedor de calçados; Ofício de vendedor(a) de refeição; Ofício de vendedor de hortifrútis; Ofício de vendedor de tucupi; Ofício de vendedor de artesanato; Ofício de vendedor de mistura; Ofício de vendedor de descartáveis e artigos de mercearia; Ofício de vendedor de pirarucu, piracuí e aviú; Ofício de cambista e rifeiro; Ofício de vendedor de maniva; Ofício de pelador de maniva; Ofício de açougueiro; Ofício de marchante; Ofício de lombador; Ofício de magarefe; Ofício de carregador e arrumador barracas; Ofício de manicure; Ofício de vigia/segurança de apoio.

Em seu texto, Wilma Leitão também cita que o Ver-o-Peso deve ser compreendido a partir de suas múltiplas feiras que se realizam no decorrer de seus espaços, ao mesmo tempo juntas e separadas. Daí a denominação de Complexo.

Se o começo é pela Praça do Relógio, encontraremos os produtos numa ordem que vai do pescado até as panelas, utensílios, redes e roupas, passando pelos legumes e farinhas e mediadas pelas barracas de comidas – refeições e lanches – interpretadas aqui como mercadorias beneficiadas. Observando-se, assim, a partir da ordenação espacial, podemos identificar uma dinâmica de ocupação dos lugares por produtos indo do mais perecível ao mais durável” (LEITÃO, 2010, p. 29).

Como em toda a área do Complexo são as relações que conformam o espaço, a organização das barracas como um todo oferecem aos compradores os ingredientes necessários a cada um dos pratos da culinária regional: ao lado do mercado do peixe, por exemplo, é possível encontrar a venda de temperos e limão; assim como a venda de peixes, camarões e carnes secos e salgados, fica próxima do setor de farinhas de todas as qualidades.

Outro exemplo da maneira como o espaço se organiza (de forma inteligente) às relações está na localização das barracas referentes à alimentação:

Mingaus, sucos e lanches estão localizados nas barracas das laterais e da frente da calçada, destinando-se ao passante apressado que muitas vezes apenas compra o produto e o consome continuando seu caminho. As barracas das áreas internas oferecem refeições para os que dispõem de mais tempo, para sentar e almoçar peixe frito com açaí ou refeições completas” (LEITÃO, 2010, p.30).

Considerando tamanha complexidade, cabe questionar: como pode um projeto de reforma abrir mão de considerar todas essas relações sociais e culturais que envolvem as trocas comerciais e o uso do espaço, assim como de consultar ampla e abertamente tantas pessoas que sustentam esse microuniverso, que é um dos mais ricos, plurais e dinâmicos da cidade, senão de toda a região?

Fontes

LEITÃO, Wilma Marques. Ver-o-Peso: estudos antropológicos no Mercado de Belém/Wilma Marques Leitão, organizadora. – Belém: NAEA, 2010.

IPHAN. Inventário Nacional de Referências Culturais – INCR Ver-o-Peso. 2010. Disponível em <http://www.ufpa.br/cma/verosite/historico.html>.