Venda de animais vivos

Em reunião realizada pelo Iphan, feirantes, lideranças afro-religiosas e técnicos debateram a venda de animais vivos no Ver-o-Peso. O projeto de reforma, ao desconsiderar essa prática, pode apresentar elementos de racismo institucional.

Abílio Dantas

(Em parceria com o portal Outros 400)

“O Plano Nacional da Igualdade Racial demarca, no primeiro ponto, que se deve combater o racismo institucional. Então eu pergunto a todos aqui: alguém sabe o que é racismo?”. O questionamento de Arthur Leandro, da Rede Amazônica de Tradições de Matriz Africana, deu o tom de preocupação da reunião realizada quarta-feira, 16, no prédio do Ministério da Cultura (MinC), em Belém. O encontro, convocado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), reuniu 26 representantes de organizações governamentais e da sociedade civil para debater a permanência do setor de venda de animais vivos no Complexo do Ver-o-Peso.

Interna
Participaram da reunião representantes de governo e da sociedade civil. Um novo encontro foi marcado para o dia 29 de março. @Kleyton Silva / Outros 400

Os dois únicos vendedores do setor, Edivaldo Moreira e Lucivaldo Oliveira, iniciaram a reunião relatando o susto que sentiram ao constatarem que a atividade que garante o sustento de suas famílias não havia sido considerada ou, ao menos, citada no projeto de reforma apresentado pelo prefeito Zenaldo Coutinho na audiência pública realizada no dia 3 de fevereiro deste ano. Segundo os comerciantes, isso representa o esquecimento de uma atividade que possui tradição na capital. “Essa atividade é herdada de pai para filho. Eu recebi essa herança dos meus avós. Na última reforma nós não tivemos problemas. Nós sabemos que é preciso melhorar, mas não acabar”, defendeu Lucivaldo.

A antropóloga e técnica do Iphan Larissa Guimarães, responsável pela condução do encontro e pela inscrição das falas, reconheceu que o projeto apresentado pela prefeitura não apresentava nenhuma proposta para o setor de animais. “O que queremos aqui é escutar todas as partes e pensar qual é a melhor maneira de garantirmos a permanência do setor. Ninguém está falando em retirar”, afirmou.

A superintendente do Iphan no Pará, Maria Dorotéa de Lima, cumpria também o papel de mediadora da reunião e propôs ideias para que a polêmica entre as exigências legais de manejo de animais colocadas por órgãos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a importância da atividade para comerciantes e líderes religiosos fosse conciliada. “Não seria possível realizar um convênio com a UFRA (Universidade Federal Rural da Amazônia) para que fosse dado um auxílio técnico sobre o trato de animais?”, questionou.

Enquanto ocorria o debate, várias dúvidas pairavam, mas um fato foi confirmado: a Prefeitura Municipal de Belém (PMB) não ouviu os setores interessados durante a elaboração da primeira etapa do projeto de reforma. A representante da Secretaria de Urbanismo (Seurb), Paula Andréa Rodrigues, admitiu que a escuta não foi realizada. “Seria muito importante que essa reunião tivesse sido realizada lá atrás, para que toda essa realidade fosse conhecida, mas isso não foi feito”, disse. A ausência de diálogo, de acordo com as lideranças religiosas, pode resultar em um ato de racismo institucional.

Rituais afro-religiosos

“É racismo institucional não considerar os povos de matriz africana que construíram a história desse país”, declarou Edson Catendê, do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC/MinC). De acordo com ele, Arthur Leandro e Emanuell Souza, também do CNPC, a compra e abate de animais vivos é parte fundamental da existência e reprodução das práticas afro-religiosas. “É cultural, não só para as religiões de matriz africana, mas de todos nós, pois os animais são trazidos das ilhas, das estradas, vem de todo lugar. É triste perceber que, mais uma vez, estamos sendo invisibilizados nessa cidade”, comentou Emanuell.

Mameto Nagetu
A líder religiosa e conselheira municipal Mãe Nangetu considera que proibir a venda de animais vivos é uma forma de racismo @Kleyton Silva / Outros 400

Pato, galinha, cabra e bode são alguns dos animais que Mãe Nangetu, líder religiosa e conselheira municipal de cultura de Patrimônio Imaterial, compra com frequência no Ver-o-Peso. Os animais devem ser adquiridos ainda inteiros, saudáveis e bonitos, segundo ela, pois são utilizados em oferendas e rituais sagrados oferecidos aos deuses.

“Ninguém faz nada sem dar oferenda ao grande comunicador, que é Exu, e que na minha tradição banto se chama Mavambo Izila. Antes de se fazer qualquer ritual, tem que se fazer uma oferenda pra ele, pra que chegue até nossos deuses”. Para ela, a proibição da venda de animais seria não só uma violência simbólica, mas “racismo mesmo, intolerância. Além da gente oferecer, nós distribuímos para a comunidade. Alimentamos as nossas comunidades a partir das nossas tradições”, concluiu.

Ao fim da reunião, decidiu-se coletivamente pela criação de um Grupo de Trabalho que será composto pelos vendedores do setor de animais, os representantes da UFRA, Sindicato dos Feirantes, Seurb, Secretaria de Economia (Secom), Agência de Defesa Agropecuária (Adepará), Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma), Quilombolas, Conselho Municipal de Cultura, Conselho Nacional de Políticas Culturais e Iphan. O próximo encontro foi marcado para o dia 29 de março, às 10h, também no prédio do MinC.

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