O Ver-o-Peso e a cidade cidadã

Por Brenda Taketa

Em entrevista com o pesquisador Saint-Clair Trindade Jr, procuramos saber como as considerações do geógrafo Milton Santos podem fazer com que os projetos de reforma previstos pela prefeitura para o Ver-o-Peso tanto beneficiem os que mantêm o lugar há gerações quanto fortaleçam um projeto de cidade orientado pela valorização dos espaços públicos

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Milton Santos em entrevista ao Jornal do Brasil, 1977 @Site Milton Santos

Um dos teóricos que fundamentam o projeto de reforma da feira do Ver-o-Peso, o geógrafo brasileiro Milton Santos, falecido em 2001, tinha preocupações que continuam bastante atuais à reflexão sobre metrópoles como Belém.

Com um olhar sensível e ao mesmo tempo atento às condições desiguais e à realidade dos países periféricos, o autor deixou um importante legado sobre questões relacionadas à modernização e à reprodução econômica do espaço.

Santos foi também reconhecido mundialmente, entre outros méritos, por tratar questões sobre o território sem jamais perder de vista os aspectos relacionados à cidadania, combinando sofisticação intelectual ao engajamento com questões sociais e seus aspectos políticos.

Por inspirar o projeto de reforma disponibilizado para consulta pública pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pelo Ministério Público Federal (MPF), o blog Ver-o-Veropeso procurou saber de que forma as noções propostas pelo autor estão de fato em acordo com o que é apresentado pela prefeitura de Belém no projeto de reforma.

Para entender melhor, entrevistamos o pesquisador Saint-Clair Trindade Júnior, geógrafo por formação, com doutorado em Geografia Humana e pós-doutorado em políticas urbanas.

Ele desenvolve pesquisas na área de planejamento e estudos urbano-regionais pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), vinculado à Universidade Federal do Pará, onde recentemente um debate sobre o projeto de reforma foi realizado.

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O professor Saint-Clair Trindade Jr foi um dos debatedores do evento realizado na universidade sobre a reforma do Ver-o-Peso no dia 17 deste mês  @IonaldoRodrigues

Espaço: modelo cívico deve condicionar o político e o econômico

“Há dois pressupostos no pensamento de Milton Santos que devem ser considerados. O primeiro diz respeito aos modelos de território, de espaço, que pode ser o modelo econômico, o modelo político e o modelo cívico. E ele defende o modelo cívico”, iniciou Saint-Clair, que trabalha há mais de duas décadas com referências teóricas do próprio Milton Santos, um dos avaliadores de sua banca de mestrado e, na época, como professor titular da Universidade de São Paulo, ministrante de cursos dos quais chegou a participar no período de doutoramento.

O projeto apresentado pela prefeitura de modo fragmentado e desarticulado do contexto teria assim um caráter prioritariamente político, que se sobrepõe aos aspectos econômicos relacionados à própria funcionalidade da feira e, principalmente, à perspectiva cívica, melhor traduzida como “pensar a feira do Ver-o-Peso como espaço de cidadania em todos os seus aspectos”.

Além disso, prossegue o entrevistado, para Milton Santos o espaço é socialmente construído e precisa ser analisado a partir de suas múltiplas dimensões.

Cidade Cidadã: o que é? 
Quando se fala de um espaço cívico, a ideia é a de garantir a cidadania. Uma cidade cidadã é diferente de uma cidade de negócios, ela vai de encontro à ideia de uma cidade voltada ao mercado turístico, por exemplo.
É uma cidade em que o cidadão pode usar o espaço com o máximo de coletividade, de diversidade, sem exclusividade. Seria, assim, um espaço de todos.

O projeto de reforma segundo a função, a forma, os processos e a estrutura

Ainda segundo Milton Santos, o espaço social precisa ser pensado a partir de aspectos como a forma, a função, a estrutura e os processos que o envolvem.

Daí decorrem outras críticas ao projeto de reforma para a feira do Ver-o-Peso proposto pela prefeitura de Belém, que privilegiou a forma e a função no desenho arquitetônico, excluindo da proposta os processos e a estrutura socioeconômica que dão sentido ao complexo.

Função – Entre esses quatro aspectos, segundo aponta Saint-Clair, parece bem evidente que o projeto acertou ao manter atenção em elementos relacionados à funcionalidade, circulação, microclima visando ao conforto térmico, entre outros.

No entanto, é preciso que haja mais atenção, pois a exemplo de outros projetos na orla de Belém, uma nova função poderia ser incluída a partir do desenho arquitetônico proposto: a da contemplação da paisagem em detrimento a do uso do espaço.

Por não fazer parte das vivências cotidianas da feira, cujas relações com o rio, as ilhas e o entorno são de permanente interação – não sendo, portanto, meramente contemplativas –, essa ideia deve ter seus impactos melhor avaliados pelos planejadores.

O Ver-o-Peso não é janela, mas porta para o rio, para a floresta e para o interior da Amazônia, não sendo, por isso, um espaço voltado prioritariamente para a contemplação e o turismo”, destaca o pesquisador.

Forma –Do ponto de vista da forma, uma leitura histórica do que é a feira se faz necessária. O Ver-o-Peso é mercado e é feira. A forma que está sendo pensada para a cobertura da feira descaracteriza o imaginário de feira que nós temos. Isso, do ponto de vista cultural, antropológico, é significativo”, aponta.

Além de mercado e feira, ele destaca que o Ver-o-Peso precisa ser considerado em seus múltiplos papéis: o de entreposto, o de espaço de encontro, de vivência, de sobrevivência, de espaço lúdico, de referências gastronômicas, de visita, de conhecimento, de reafirmação da história e da cultura local e regional, de referência patrimonial material e imaterial.

Na análise, ele aponta que as barracas não deveriam ser descartadas, por terem grande importância para o imaginário que se tem das feiras na região. “A ideia de barraca tem que ser retomada e não aniquilada, arrasada”, avalia.

Além disso, lembra o geógrafo, elementos característicos como o clima de Belém, em que as chuvas são frequentes, não deveriam justificar por si sós uma nova forma para a feira: o ideal é que o projeto seja capaz de incorporar as particularidades naturais da cidade e da região e potencializá-las do ponto de vista arquitetônico.

No próprio diagnóstico, o projeto relata alguns problemas, como aqueles vãos entre as tendas, que incentivaram soluções dadas pelos próprios feirantes. Essas soluções espontâneas podem ser aproveitadas no desenho arquitetônico, inclusive avaliando-se a possibilidade de a própria chuva cair ali, com o devido escoamento da água, aproveitando-a funcional e esteticamente, o que poderia, inclusive, dar mais beleza ao projeto”, argumenta.

Quem vai poder desenhar isso é o arquiteto. Eu estou pensando aqui no espaço, nas demandas existentes, e que podem levar a uma concepção de forma menos agressiva em relação ao que é a feira”, completa.

Outros dois pontos também precisam ser considerados pela prefeitura na condução do planejamento. O primeiro diz respeito à necessidade de se incluir no próprio projeto uma periodicidade de reformas e incentivo a práticas cotidianas de manutenção da feira.

Além disso, é preciso que se considere um tipo de cobertura que não impeça a visibilidade dos edifícios históricos presentes na área, com grande importância para o skyline da feira e da cidade.

A forma deve ir ao encontro do conteúdo e expressá-lo, não o contrário. Não se pode esperar que o conteúdo vá se adequar à forma, tornando-se formatado pela imposição arquitetônica”, enfatiza.

Processos – Um projeto de reforma para o Ver-o-Peso não pode considerar apenas o ponto de vista arquitetônico, tampouco abordá-lo como se o espaço fosse isolado do contexto do complexo da feira e da cidade.

Não dá para pensar a feira sem pensar o que é esse complexo todo, quais possibilidades vão surgir, a partir do projeto, em termos de gestão, de geração de trabalho e renda, de controle e de apropriação do espaço”, alerta.

Segundo aponta, um projeto desse porte deve inclusive articular projetos sociais.

Há também práticas educativas a serem consideradas, a exemplo da presença de profissionais voltados para essa intenção, como nutricionistas, engenheiros ambientais, geógrafos, bem como de agentes responsáveis pela limpeza constantemente, para ajudar a conservar o espaço. E atividades que possam ser discutidas e repassadas aos feirantes, por meio das quais eles também dividam a responsabilidade sobre as ações de manutenção e de preservação do espaço.

Tudo sem deixar de questionar sobre a possibilidade de a nova forma estimular processos de gentrificação e de turistificação da área, assim como de beneficiar alguns circuitos econômicos em detrimento de outros.

Não temos a discussão dos processos maiores, nem a discussão da estrutura na qual o projeto se enquadra , que é a de uma cidade cada vez mais segregada, em que se privatizam os espaços públicos. Uma das coisas em que deveria se pensar é: que cidade é essa em que se insere esse projeto? É uma cidade em que se quer que os espaços sejam privatizados ou que sejam mais públicos?”, indaga.

Estrutura – Por último, aponta o pesquisador, é preciso avaliar a estrutura social e econômica em que esse projeto se insere dentro da cidade. “Como esse processo dialoga com a feira do açaí, com o terminal fluvial, com a Estação das Docas, com o Feliz Lusitânia, com o Centro Global de Gastronomia e Biodiversidade? Que tipo de cidade esse projeto representa?”, questiona.

A forma arquitetônica, relembra o professor, não pode ser pensada desvinculada disso: do funcional, da história, da antropologia, da sociologia, em resumo, das vivências desse lugar.

Confira abaixo outros trechos relevantes da entrevista:

Padronizar: solução ou problema?
Há uma tendência, em grande parte, nessa higienização dos mercados e das feiras, de transformá-los em uma coisa mais padronizada, com base no que se vê em outros mercados do mundo. Eu acho que nós temos uma especificidade do que é a feira e do que é o mercado para nós. Penso que temos que melhorar essa questão da conservação e do bom trato com os alimentos, da higiene, do conforto térmico. Tudo isso tem que ser melhorado, sem dúvida. Mas nós não podemos conceber uma forma espacial que seja principalmente voltada para a contemplação.
É preciso que essa forma reforce as vivências da feira, a história do lugar, a história dos indivíduos que estão ali.

Modelos de planejamento
A empresa da requalificação anterior permaneceu lá por um tempo considerável, instalou tendas, testou o uso, considerou as opiniões. Então, a partir de um planejamento participativo, quando as pessoas fazem opções, elas também estão diante de possibilidades de errar. E em função disso elas precisam ser ouvidas novamente.
A forma de agir da prefeitura atualmente traz de volta a ideia de planejamento da década de 1970.
Qual é essa ideia de planejamento? A de que os técnicos sabem mais do que todo mundo. E aí eles vêm, desenham as coisas e as pessoas aceitam ou não. Isso já não pode ser assim.
Penso que, talvez, o grande problema da prefeitura ao contratar a empresa desse modo, para desenhar a forma pensando apenas em algumas funções, seja esse: achar que apresentando o projeto você vai enquadrar as pessoas. E não é só enquadramento funcional – porque do ponto de vista funcional o projeto está relativamente bem feito -, mas tem o enquadramento simbólico, histórico, uma série de elementos que precisam estar presentes no desenho arquitetônico, no desenho paisagístico proposto.
Volto a dizer: a empresa é uma empresa que faz projetos. Ela fez o papel dela, foi contratada e fez. Talvez ela não trabalhe com a ideia de gestão, de planejamento participativo, esse é o papel da prefeitura. E, inclusive na contratação do projeto, tinha que se prever no edital uma cláusula que apontasse que a empresa teria que se adequar a um diálogo participativo.
Essa deveria ser uma condição, que o projeto não fosse feito no escritório e levado para ser apreciado, mas que fosse desenhado à medida que o diálogo com os feirantes e a população em geral fosse sendo construído.

Diálogo aberto
O diálogo não tem que ser feito só com os usuários, mas com as pessoas que entendem de patrimônio, que pensam o espaço urbano. O diálogo tem que ser pleno. É claro que os agentes centrais ali são os que trabalham na feira e os que a usam, que compram na feira. Agora, uma vez chamados esses sujeitos para a participação, você começa a desenhar, claro que com a mediação técnica do arquiteto, do engenheiro, do antropólogo, do geógrafo, do sociólogo, do historiador, para, de certa maneira, cobrir eventuais lacunas que o projeto anterior tenha apresentado, o que, com certeza, tem.
Mas não é o caso de pegar e usar isso como pressuposto, de dizer ‘olha, já está descaracterizado, então vamos descaracterizar ainda mais’.
Quando o planejamento é participativo e há falhas no projeto, a responsabilidade nunca é só do gestor, mas dele e das pessoas que participaram. A solução, portanto, é a de retomar o projeto e melhorar a sua concepção. Não pode ser arrasar a feira e transformá-la num grande mercado coberto, sofisticado, sob a justificativa de sua inviabilidade”.

Relações com o Centro Global de Gastronomia e Biodiversidade
Se é um projeto maior, isso tem que ficar claro no projeto de requalificação. E isso é outra coisa que a gente tem que questionar: não é revitalização, o Ver-o-Peso não está morto. Se ele está morto não é para a população e para o usuário. Ele está morto para o poder público que não o vê como espaço vivo. Então, não é revitalização, é uma requalificação do espaço, da forma espacial e dos elementos nela contidos.
Essa requalificação está ligada a que modelo de cidade e que elementos estão relacionados a ela? Essa ideia do centro global de gastronomia e biodiversidade tem relação com a reforma? Se tem, qual é? É preciso dizer.

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