#Cidadepraspessoas: de quais pessoas estamos mesmo falando?

Por Brenda Taketa

Desde o final do ano passado, a prefeitura, em parceria com o governo do Estado e também com o apoio aberto de um grupo de comunicação local, vem divulgando uma série de medidas que reforçam a valorização do centro antigo de Belém no contexto da região metropolitana.

Os anúncios, veiculados pela imprensa nacional e local em detrimento de consultas públicas e amplas discussões com a sociedade, pareciam obedecer a uma sequência de ações que culminariam na escolha de Belém como “cidade criativa da gastronomia” pela Unesco, a Organização das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura.

Durante as comemorações oficiais do aniversário de 400 anos da cidade, os planos de criar na área histórica um novo centro especializado em alta gastronomia foram complementados pela divulgação de uma reforma para uma parte do Ver-o-Peso, complexo tombado como patrimônio histórico, formado por diferentes feiras, mercados e edificações constituídas ali no decorrer dos séculos, desde os tempos coloniais.

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Como demonstra a literatura científica, o interesse em “revitalizar” o centro antigo não é recente. De 1995 a 2006, um conjunto de obras foi implantado na região mais antiga da cidade, iniciando pela Estação das Docas, passando pelo complexo Feliz Lusitânia e o Polo São José Liberto até o Mangal das Garças, mas o que ainda se discute, ao menos em âmbito acadêmico, é que essa foi também uma forma de valorizar os empreendimentos do entorno, a partir da adoção da paisagem como um ativo. 

Num artigo publicado em 2010, o geógrafo Saint-Clair Trindade Júnior relata que, pela falta de relação com o entorno e com a vida existente nesses locais, esses projetos estavam sendo implantados como “enclaves”.

Em todos os projetos, a intenção de revitalização de espaços decadentes e de pouco dinamismo urbano tende a não reconhecer os territórios vividos do entorno; assumindo, pelo contrário, o caráter de vitrines e enclaves, não obstante o dinamismo das experiências da vida cotidiana ligadas ao comércio popular, às feiras e aos portos, que são expressivas na área central, conforme já demonstrado. Em lugar dessas práticas, é concedido destaque a um cenário para o acontecer da vida moderna, voltada sobretudo para uma determinada fração dos habitantes que acompanha mais de perto o novo ritmo moderno da cidade ou para mostrá-la para os turistas que a visitam. As intervenções seguem tendências de requalificação que fazem apelo a uma sensibilidade (internacional-identitária-estética) portadora de valores específicos, não incorporando programas sociais e de aderência à realidade local”, aponta o texto.

Conforme tem sido noticiado no decorrer deste mês por este blog, as propostas atuais de mudanças na área pelo governo municipal parecem repetir a desconexão com a vida cotidiana, as dinâmicas socioculturais e as relações econômicas do entorno, a exemplo do projeto de reforma para o Ver-o-Peso.

A diferença é que, hoje, fica mais evidente que essa “revitalização” beneficiaria tanto o que promete ser o Centro Global de Gastronomia e Biodiversidade, a ser implantado no Complexo Feliz Lusitânia sob a liderança do Governo do Estado, quanto, do ponto de vista imobiliário, revalorizar ainda mais bairros que circunscrevem o centro mais antigo, como a Batista Campos, Nazaré, e, principalmente, o Umarizal, cada dia mais pressionados pela disputa com uma nova centralidade mais afastada, conhecida como Nova Belém.

Situada no entorno da Rodovia Augusto Montenegro, a Nova Belém tem se conformado nas últimas décadas como uma nova frente de expansão imobiliária pelo setor privado, apresentando-se como espaço de implantação de toda uma nova rede comercial e de alto serviços – a exemplo do novo shopping center Grão-Pará -, criado para atender principalmente aos públicos dos condomínios implantados na área por incorporadoras de atuação nacional e capital aberto [ver artigo de Ana Cláudia Cardoso e Raul Ventura Neto, que trata da evolução urbana de Belém, aqui].

Culturalismo de mercado na engrenagem da gestão pública e do desenvolvimento urbano

Anteriores aos anúncios governamentais, uma série de manifestações têm reivindicado, por meio de programações artístico-culturais e gastronômicas, a “ocupação” e o uso do centro histórico por coletivos urbanos e agentes privados.

Essas iniciativas, a exemplo do Boulevarte e do Circular Campina-Cidade Velha, resguardam entre si algumas diferenças de concepção e composição de parcerias, mas recorrem com certa frequência ao discurso de que a parte histórica da cidade precisa ser “ocupada” com atividades artístico-culturais para reverter a “deterioração” e o “abandono”.

Isso nos remete à discussão sobre como uma espécie de “culturalismo de mercado” não é novidade nem exclusiva a Belém, sendo um movimento comum a diversas cidades do mundo – de Paris, Barcelona e Nova York à São Paulo -, que têm revalorizadas antigas áreas depreciadas pela falta de investimentos públicos e privados no decorrer de vários anos ou mesmo por décadas.

Depois de recriadas, essas áreas passam a ser reocupadas, agora com novo aporte de capital, para o consumo de classes médias e elites solventes, que podem arcar com os custos dos preços de imóveis e dos novos serviços ofertados.

A partir de trechos retirados dos diagnósticos realizados tanto pela prefeitura de Belém quanto pela Secretaria de Estado de Cultura (Secult) nos anos de 1998 e 2002, respectivamente, o pesquisador Saint-Clair Trindade Jr apresenta como a concepção tecnocrata (e mesmo elitista) dos planejadores urbanos ignora – seja pelo esforço de ocultar ou pela depreciação – o uso popular dos territórios, associando as áreas de moradia nas antigas zonas de várzea ou mesmo nas historicamente depreciadas também pela omissão governamental, assim como os fluxos nos portos e feiras, o comércio informal ou destinado a públicos de baixa renda, muitas vezes precarizados, a ideias de “deterioração”, “declínio”, “decadência” e “obsolescência funcional, física e econômica” (Saint-Clair Trindade Jr; em Territórios pensados e territórios vividos: apropriação do espaço e práticas de renovação urbana na área central de Belém”. Grumo. Nº.6, V. 2, 2007)

Logo no primeiro capítulo do livro “A cidade do pensamento único: desmanchando consensos”, publicado em 2007, a autora Otília Arantes anuncia o espaço urbano como a nova fronteira privilegiada pelo capitalismo financeiro.

Até aí nenhuma novidade além do que já seria tratado por outros teóricos, não fosse, segundo ela, um diferencial cada vez mais notável, especialmente a partir dos anos 1970-80: a “cultura” torna-se um aspecto central no processo de reconfiguração da cidade e no convencimento de diferentes classes, incluindo gerações e matrizes urbanísticas, e grupos sociais, a exemplo dos rentistas, políticos, imprensa, empresários, pesquisadores, artistas e mesmo as organizações sociais, entre outros, agora reunidos em coalizões para apoiar as novas mudanças voltadas à revalorização imobiliária de antigas áreas no espaço urbano.
Na medida em que arte e cultura são elementos de grande aderência social, um consenso festivo e ufanista sobre a nova vocação da cidade seria assim amplamente reafirmado – afinal, “quem seria contra tal aprimoramento coletivo?”, indaga Arantes no texto.

O argumento torna-se ainda mais irresistível quando evocados o aumento da competitividade das cidades, a promessa de desenvolvimento (geração de renda e empregos!) e a melhoria da autoimagem e estima (cívica) dos habitantes.

As “cidades-empreendimentos” se converteriam ao mesmo tempo nas próprias mercadorias (inéditas) e nas novas fronteiras a serem desbravadas por governantes e investidores, para a acumulação de poder e dinheiro por meio desse novo negócio baseado em imagens, tornando-se assim “cidades-empresas-culturais”.

Outro elemento central nesse contexto seria a organização de uma sociedade civil alinhada aos interesses privados das elites e grupos econômicos interessados nesse novo tipo de produção da cidade.

Dessa forma, o grande trunfo das novas práticas seriam a de naturalizar a convicção de que as cidades devem ser geridas como negócios e não para negócios, gerando coalizões público-privadas em prol de políticas urbanas destinadas à expansão da economia local e aumento da riqueza, ao mesmo tempo em que fabrica os valiosos consensos por meio de ações de marketing cultural.

Para variar – ou melhor, pela primeira vez de modo exemplar, a partir dos anos 1970 -, reabilitava-se a área sinistrada por uma operação ‘concertada’ (como dirão os ideólogos catalães) de requalificação dos espaços desativados das velhas manufaturas, convertidos em galerias ou mesmo residências de artistas, boutiques, restaurantes ditos sofisticados etc., e consequente migração forçada dos antigos moradores e reconversão dos raros proprietários remanescentes, travestidos de intermediários de altos negócios imobiliários. Novos padrões de gosto e consumo difundiam a sensação reconfortante de que uma vida de artista, desta vez reconciliada com a sociedade, podia ser o apanágio de uma nova vanguarda da burguesia. […] Aí o embrião de uma mudança emblemática: à medida que a cultura passava a ser o principal negócio das cidades em vias de gentrificação, ficava cada vez mais evidente para os agentes envolvidos na operação que era ela, a cultura, um dos mais poderosos meios de controle urbano no atual momento de reestruturação da dominação mundial” (Otília Arantes, “Uma estratégia fatal”, em “A cidade do pensamento único: desmanchando consensos, 2007, p. 32-33).

Ocupar o quê? Colonizar quem?

Parece se encaminhar nessa direção – de um culturalismo que acena direta ou indiretamente caminhos gentrificadores – o caso de diferentes eventos que “ocupam” há pelos menos dois anos os bairros da Campina e da Cidade Velha, com o apoio institucional de organizações diversas, como os governos municipal e estadual, empresas privadas, bancos, fundações públicas e coletivos de artistas interessados em expor e comercializar trabalhos como alternativa num mercado consideravelmente restrito.

Gentrificação: palavra adaptada do inglês gentrification, em português, “escamoteada pelo recurso constante ao eufemismo: revitalização, reabilitação, revalorização, reciclagem, promoção, requalificação, até mesmo renascença e por aí afora, mal encobrindo, pelo contrário, o sentido original de invasão e reconquista, inerente ao retorno das camadas afluentes ao coração das cidades” (Otília Arantes, “Uma estratégia fatal”, em “A cidade do pensamento único: desmanchando consensos, 2007, p. 31)

Sempre aos domingos, dia esvaziados das atividades e trabalhadores da zona comercial de acesso popular, as programações levam a espaços públicos e privados milhares de pessoas atraídas por atividades artístico-culturais e o consumo de “boa comida”.

Nesse movimento, ganha força o discurso das “ocupações” de lugares por um público distinto, consumidor de bens culturais e apreciador do patrimônio edificado.

Muitos movimentos urbanos atuais buscam a legitimação social associando-se a ideias caras às mobilizações contemporâneas de ocupação da cidade, entre os quais a própria noção de direito à cidade. Não à toa, David Harvey alerta num livro recente: “o direito à cidade (assim como a ideia de “ocupação”) é um significante vazio. Tudo depende de quem lhe vai conferir significado”, afirma o autor. O sentido mobilizador de transformações, que remete à emergência de movimentos sociais urbanos e à luta por alternativas ao modelo de urbanização das cidades, parece assim ser substituído por programações de caráter episódico, que privilegiam o lazer orientado pelo consumo, que privilegia o entretenimento no lugar da política (David Harvey, “Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana”, 2014).

Ainda que discursivamente as iniciativas sejam para “todos”, de uma cidade para “pessoas” tratadas de forma genérica, os preços dos produtos e serviços ofertados, assim como a própria natureza de boa parte dos espaços privados nos quais as atividades são desenvolvidas, acabam por tornar a participação consideravelmente seleta.

Uma forma de barreira simbólica é criada assim e, a partir dela, torna-se possível sugerir a substituição dos atores e usos que previamente ocupam esses espaços – trabalhadores de baixa renda, grupos socialmente marginalizados e comerciantes populares, entre outros – por novas formas de presença, capazes de “revitalizar” (dar nova vida) por meio do consumo e do trânsito no bairro, ao mesmo tempo festivo, ufanista e eufórico.

Diferente do que se percebe em outros movimentos nas áreas periféricas da cidade, a despolitização – ou melhor, a falta de articulação das iniciativas com discussões políticas mais críticas sobre cultura e cidade – termina por reforçar os efeitos da já limitada capacidade do Estado de fomentar a produção, incluir mais atores e áreas de investimentos, formas de expressão, assim como de ofertar e ampliar o acesso a espaços de arte e cultura.

A falta de conexão mais direta com discussões públicas em defesa da pluralidade de expressões artístico-culturais, por meio da produção, pesquisa, crítica, experimentação e formação, entre outras medidas, termina por enfraquecer os próprios esforços que asseguram a essas iniciativas a virtude de buscar dinamizar e criar novas redes de comercialização no setor.

A gestão da cultura pelos governos locais se mantém dessa forma não apenas concentrada na realização de eventos e programações festivas, mas também continua bastante restrita, ou melhor, concentrada em grupos, setores, atividades e a áreas centrais da cidade. Para completar, também se mistura com interesses privados que, centrados no patrimônio arquitetônico associado ao setor de imóveis, representa um projeto de cidade, de “urbano” senão excludente e elitista, bastante apartado da discussão pública sobre qual cidade é essa que se pretende transformar – e, afinal, para quem.

É evidente que há a capacidade de adesão, assim como de mobilizar recursos e parcerias entre os pares que se reconhecem nessas iniciativas, que transitam de forma confusa (talvez propositalmente) entre o público e o privado, mas há que se questionar com certa urgência quais os efeitos (inesperados?) que elas podem gerar no sentido de reforçar velhos projetos de poder dos grupos hegemônicos locais, ao invés de encaminharem novas soluções para os problemas comuns enfrentados na área social, para além das políticas culturais.

“[…] é preciso distinguir acima do alicerce formado pelos fatores econômicos clássicos sobre os quais se edifica uma cidade – terra, trabalho e capital – pelo menos mais três camadas de trocas desiguais, e no caso ‘simbólicas’. A primeira delas consiste na manipulação de linguagens simbólicas de exclusão e habilitação, o ‘visual’ de uma cidade, bem como […] seu aspecto ‘tátil’ […] refletem decisões sobre o que, e quem, pode estar visível ou não, decisões em suma sobre ordem e desordem, o que acarreta algo como uma estetização do poder, da qual o desenho arquitetônico é um dos instrumentos mais aparatosos. Na segunda camada, deparamos de novo […] com a máquina de Molotch: é que a economia simbólica da cidade também é comandada pela habilidade dos ‘place entrepreneurs’ […] em lidar com os símbolos do crescimento, e sua promessa de empregos e negócios. Por último, o setor mais tradicional […], a aliança entre os círculos de negócios e os ‘advogados da cidade’ – quer dizer, a cobertura do multicolorido edifício do Terceiro Setor – a qual, por uma combinação eficiente de mecenato e orgulho cívico, cimentado pelo desejo de se apresentar como um novo patriciado, se encarregará de fazer com que se multipliquem museus bombásticos, parques idem e complexos arquitetônicos que assegurem a quem de direito que se está entrando numa ‘world-class-city'” (Otília Arantes, “Uma estratégia fatal”, em “A cidade do pensamento único: desmanchando consensos, 2007, p. 33-34).

Clique aqui para continuar a ler mais um texto da série: A economia e a política dentro do “tudo é cultura”.

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