Reforma atropelada

Por Guilherme Guerreiro Neto

Na véspera do aniversário de Belém, a superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Pará, Dorotéa de Lima, recebeu uma ligação do prefeito Zenaldo Coutinho. Ele informou a ela que o governo do Pará entraria com 25 milhões de reais para a obra no Ver-o-Peso. Só não disse que, dali em diante, deixaria de lado o recurso disponibilizado pelo PAC Cidades Históricas, programa que motivou a reforma da feira. No dia dos 400 anos, a prefeitura divulgou um vídeo-maquete e anunciou a obra como presente para a cidade.

Dia 3 de fevereiro, o arquiteto José Freire, da empresa DPJ Arquitetura e Engenharia, responsável pelo projeto de reforma, acordou com mensagem de texto avisando que, dentro de algumas horas, teria que fazer uma apresentação do projeto. Freire passou a manhã preparando o material para apresentar. À tarde, no teatro Maria Sylvia Nunes, na Estação das Docas, fez a defesa de seu projeto para os feirantes, a sociedade civil e uma claque da prefeitura. Aquela defesa nunca havia sido feita ao Iphan, e já trazia modificações se comparada ao material escrito até então enviado ao órgão federal.

Uma série de atropelos marca a tentativa da prefeitura de Belém de aprovar a toque de caixa a proposta de intervenção no Ver-o-Peso. Na reunião de 3 de fevereiro, Zenaldo deixou clara sua pouca vocação para o diálogo. Disse, a certa altura, que ou se aprovava, ainda em fevereiro, o projeto em questão, ou o dinheiro seria destinado a outras áreas. Como se vê pelo calendário, a pressão não funcionou. Graças à pressão da sociedade, há um debate em curso.

Na última quinta-feira, 3 de março, um mês após o evento na Estação das Docas, houve audiência pública na Câmara Municipal de Belém sobre o projeto. A prefeitura não enviou representantes. Dois dias antes, realizou um almoço no Palácio Antônio Lemos para apresentar a proposta de reforma aos vereadores. Entre os presentes, a maioria forma a base de apoio ao governo e votou contra a realização da sessão pública. A bancada de oposição se recusou a participar do almoço.

Concurso ou tomada de preço?

Até 31 de março, por decisão do Ministério Público Federal (MPF) e do Iphan, uma consulta pública sobre a reforma está aberta. Antes da crítica ao projeto, contudo, há questionamentos sobre o processo. A empresa DPJ foi contratada por tomada de preço, uma das modalidades de escolha possíveis, não a mais indicada. Na última intervenção no Ver-o-Peso, realizada entre os anos de 1999 e 2004, o projeto foi selecionado por meio de um concurso nacional, aberto a todo o país, e organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).

Todos as seções do IAB  estão incomodadas com a questão de retirar uma proposta que é vencedora de concurso nacional para colocar uma feita por tomada de preço, de pegar um complexo que envolve uma série de locais articulados e desmembrar para chegar num valor que consiga fazer essa tomada de preço”, comenta o arquiteto Sávio Fernandes, presidente do IAB Pará.

Nossa proposta é que seja feita uma série de discussões até chegar a um plano de necessidades para aquele espaço. E, baseado nessa lista de necessidades, abrir para um concurso nacional de arquitetura”, completa.

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O IAB defende a, partir da captação das demandas apontadas pela sociedade e pelos públicos da feira, a realização de novo concurso público para a elaboração de um novo projeto de reforma. Ou então a implantação do projeto vencedor em 1999, apenas parcialmente executado. Na imagem, o  presidente do IAB Pará, Sávio Fernandes @KleytonSilva/Outros 400 

O Iphan não avaliza a proposta de recomeçar do zero. “Eu acho inviável. Você já pagou parte do projeto, já tem um trabalho em andamento. Uma tomada de preço pode não ser a forma ideal, mas é legítima e legal. Tem um processo em andamento e a gente tem que se empenhar para aprimorá-lo, ouvir as pessoas e fazer os ajustes necessários”, considera Dorotéa de Lima.

Se assim for, não sobra margem para a elaboração de projetos alternativos. Resta discutir como melhorar o projeto da prefeitura. As licitações do PAC Cidades Históricas vem sendo feitas por tomada de preço em todo país e o Iphan do Pará segue a reboque da lógica do programa, apesar do precedente de concurso na reforma anterior.

Doroteia IPHAN
Apesar das pressões da prefeitura para a aprovação do projeto de reforma pelo Iphan ainda em fevereiro, a superintendente do instituto tem dialogado com diferentes setores da sociedade para incorporar críticas e sugestões ao projeto de reforma, garantindo mais transparência ao processo @KleytonSilva/Outros 400

Não sendo possível abrir um concurso, a sugestão do IAB é manter o projeto que já foi implantado na feira, mas com adaptações. “Já que o projeto que está lá tem o status de ser um projeto vencedor de concurso nacional, por que não tentar adaptar? A verba do Iphan, de 14 milhões, era prevista e mensurada para fazer manutenção não apenas da lona, também de toda a parte hidráulica, elétrica. Como o projeto acabou crescendo a ponto de se arrebentar tudo e fazer um novo, aí foi para o outro valor”, explica Sávio.

Em vez dos 14 milhões de reais do PAC Cidades Históricas, a obra proposta pela prefeitura prevê o investimento de 25 milhões do governo do estado, 6,5 milhões de emendas parlamentares e 4 milhões do município. O que será feito com os 14 milhões? Por hora, ninguém sabe. O pagamento do projeto, no entanto, está sendo feito com verba do PAC. Dos quase 565 mil reais que correspondem ao valor total do projeto, o Iphan já liberou à empresa DPJ cerca de 113 mil (20%), referente à segunda etapa (ver abaixo).

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Das 15 obras do PAC Cidades Históricas em Belém, a DPJ Arquitetura e Engenharia assumiu o projeto de quatro, todos licitados por tomada de preço. Além do Ver-o-Peso, cujo contrato data de 14 de outubro de 2014, a empresa ficou responsável pelos projetos da Praça do Carmo, da Praça das Mercês e do Palacete Bolonha. O desenvolvimento de cada projeto se dá em quatro etapas sequenciais, uma só deve ser entregue após aprovação da anterior. Não foi o que ocorreu no caso da feira. Mesmo sem a aprovação da primeira etapa, a prefeitura entregou de uma vez o material das três etapas subsequentes. Acima, a tabela com os detalhes de cada etapa.

 

Projeto integrado e remanejamento

Em uma coisa Iphan e IAB concordam: é preciso ter um projeto integrado, que atenda todo o Complexo do Ver-o-Peso. A DPJ foi contratada para fazer um projeto restrito à Feira do Ver-o-Peso. Pedra do Peixe, Feira do Açaí, Praça do Pescador e Solar da Beira não estão contemplados. “Há questões colocadas pelos feirantes que nós entendemos que precisam ser discutidas, como um projeto completo para a área do complexo, não apenas para a feira”, aponta Dorotéa.

Você tem algo que funciona como uma elemento orgânico, um elemento conjunto, em que as coisas todas se retroalimentam. A presença da venda de peixe traz usuários para comer nas barracas de alimentação, traz usuários para comprar o hortifruti. Com uma visão integrada desse conjunto, você pode proteger melhor as atividades”, garante o presidente do IAB Pará.

Fazer um projeto separado para o Solar da Beira traz o risco de se ter um funcionamento completamente desarticulado, no meio da feira”, completa.

Enquanto o Ver-o-Peso estiver em obras, para onde vão os feirantes? No dia da votação improvisada que a prefeitura armou na feira para tentar legitimar seu projeto de reforma, o secretário municipal de urbanismo, Adinaldo Oliveira, respondeu assim: “Não tem como dizer agora: ‘Olha, nós vamos remanejar vocês para tal lugar. Vamos remanejar só 200 feirantes ou 400’. Não tem como. Quem for executar a obra, após o processo licitatório, é que vai ter essa capacidade, junto com a prefeitura e com os feirantes, de dizer qual é a melhor estratégia”.

Para o Iphan, a prefeitura precisa negociar com trabalhadores, desde já, os detalhes sobre o remanejamento temporário. “Essa questão não deve ser respondida só quando a obra for contratada”, avalia a superintendente do Instituto.

O presidente do IAB Pará entende que o projeto de reforma já poderia indicar os passos para a realocação. “Há como ter um planejamento de etapas de construção, que podem ser previstas pelo arquiteto, vislumbrando número de feirantes que vão sair e ser realocados em outra área”, comenta Sávio.

Cada atropelo no processo, cada ponto mal resolvido põe em xeque o modus operandi da prefeitura de Belém. Sávio Fernandes vê com preocupação o uso eleitoreiro do projeto de intervenção. “Isso é danoso. Um espaço desse, que é complexo, pede sim debates, participação e tem que se dar tempo. Tem um tempo de processo que está sendo atropelado pela gestão municipal para apresentar isso como carta eleitoreira”, afirma o presidente do IAB Pará.

Não é vocação do Ver-o-Peso fazer as vezes de entreposto eleitoral.

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